O controverso autor norte-americano J.D. Salinger não foi apenas um doidão recluso que lutava contra a fama e a invasão de sua privacidade. Tocado pelos ensinamentos e pela vida de Sri Ramakrishna e Swami Vivekananda, o escritor foi fisgado pela Vedanta por volta da década de 50 do século passado - ainda antes do lançamento de seu best seller, O Apanhador no Campo de Centeio -, após passar alguns anos estudando Budismo. E foi o conhecimento do monismo e da renúncia que o levou a se “retirar” da sociedade, isolando-se em New Hampshire e deixando as badalações de Nova York, onde nasceu e cresceu, tendo morado muito próximo da Vedanta Society de lá, a mesma fundada por Vivekananda em 1894. Com tal proximidade física, a proximidade psíquica foi rápida e generosa com Salinger, uma vez que foi com a Vedanta e ensinamentos de Ramakrishna que ele se “libertou” da escravidão da fama (e dos frutos dela), da qual nunca fora muito adepto de qualquer maneira. A conexão de Salinger com a Ordem Ramakrishna é notória e inclusive retratada em filmes biográficos recentes, como Rebel in The Rye e Salinger.
A influência do pensamento espiritual asiático nos romances de Salinger é percebida a todo momento em sua escrita. Seus personagens estão sempre às voltas com questões filosóficas sobre Deus, karma, reencarnação e até a necessidade da prática de recitação de mantras, chamado japa. É nesta sadhana, a repetição de mantra, que está fundada uma das estórias de Salinger que mais explicitam a influência do pensamento hindu: o conto sobre a garota Franny Glass, personagem do livro Franny & Zooey, que se vê totalmente cativada pelo livro O Caminho do Peregrino Russo e pela sadhana adotada pelo peregrino, que aprende e ensina como repetir o Santo Nome o tempo todo através do mantra cristão “Senhor Jesus, tende piedade de mim”. Enfeitiçada pelo poder desta oração, Franny, em dado momento da estória, afirma que os relatos das peregrinações são a melhor coisa que ela já leu. A maneira como Salinger conecta o livro russo às inquietudes místicas da jovem Franny é muito singular e dotado de uma visão permeada pelos ensinamentos hindus, como fica claro nesses trechos em que ela explica ao namorado, Lane, o significado da oração constante:
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Franny: - Como eu dizia, o peregrino… o tal camponês simplório… decidira fazer a peregrinação para descobrir o que a Bíblia quer dizer quando afirma que temos a obrigação de rezar o tempo todo. E então encontrou esses estarostes… aquelas pessoas muito sabidas em religião de que já falei e que não faziam outra coisa há anos e mais anos senão estudar a Philokalia.
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Franny: - O estaroste com quem o peregrino falou referiu-se, antes de mais nada, à Prece de Jesus. Você sabe como é, não? “Senhor Jesus Cristo, tende piedade de mim.” E foi tudo, quer dizer, o estaroste explicou-lhe que essas são as melhores palavras que se pode usar quando se reza. Especialmente a palavra “piedade”, porque é realmente uma grande palavra e pode significar uma porção de coisas. Quer dizer, não significa apenas piedade.
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Franny: - O estaroste disse ao peregrino que se ele repetisse constantemente essa prece - no princípio, basta apenas murmurá-la, com um movimento imperceptível dos lábios - então, o que acaba ocorrendo é que a prece adquire vida própria. Acontece alguma coisa, não sei o que é, mas acontece. E as palavras ficam sincronizadas com as batidas do coração e é então que uma pessoa se encontra realmente rezando sem parar - quase sem se dar conta -, o que tem um efeito esmagadoramente místico em todas as nossas concepções. E é isso que é o objetivo da coisa: recitamos a prece para purificar as ideias e obter uma concepção inteiramente nova sobre o significado de tudo o que nos cerca.
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Franny: - Mas o mais maravilhoso de tudo é que, quando se começa, não é preciso sequer ter fé no que estamos fazendo. Mesmo que a gente se sinta terrivelmente confuso com tudo isso, não tem importância nenhuma. Quer dizer, não estamos ofendendo ninguém nem coisa nenhuma. Em outras palavras, ninguém exige que você acredite em coisa alguma quando começa. Nem é preciso pensar sobre o que estamos dizendo, afirmava o estaroste. No princípio, tudo o que é preciso é a quantidade. Então, mais tarde, ela mesma se converte em qualidade. Graças a sua própria energia ou uma coisa assim. Afirmava ele que qualquer dos nomes de Deus… qualquer deles.. possui essa força própria e autogeradora, que é a atividade, e começa agindo assim que nos entregamos à oração.
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Franny: - Na verdade, a coisa faz sentido, porque nas seitas Nembutsu do Budismo, as pessoas dizem repetidamente “Namu Amida Butsu”, o que quer dizer “Louvado seja Buda”, ou coisa parecida… e a mesma coisa acontece. Exatamente a mesma coisa…
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Franny: - A mesma coisa acontece, na Nuvem do Desconhecido. Só com a palavra “Deus”. Basta repetir o tempo todo “Deus”. Ela encarou Lane mais diretamente do que antes. - Você já tinha ouvido falar de coisa mais fascinante em toda sua vida, hein? É muito difícil afirmar que não passa de mera coincidência e ficar por aí… É isso que me parece tão fascinante. Pelo menos, parece-me terrivelmente…..
Interrompeu-se. Lane revolvia-se na cadeira e havia no rosto dele uma expressão, um arquear muito especial das sobrancelhas, que ela conhecia muito bem.
Franny: - O que há?
Lane: - Você realmente acredita em toda essa estória?
Franny estendeu a mão para o maço de cigarros e tirou outro.
Franny: - Eu não disse que acreditava nem que deixava de acreditar, replicou, segurando a caixa de fósforos. Só disse que era um negócio fascinante.
Lane acendeu-lhe o cigarro.
Franny: - Penso que é uma coincidência muito estranha - teimou ela, soprando para o ar uma baforada do cigarro -, a gente encontrar tantas vezes esse gênero de conselhos. Quer dizer, o conselho dessas pessoas religiosas realmente esclarecidas e sem aquelas palhaçadas que todos nós conhecemos. E, afinal de contas, qual é o conselho? Se repetirmos infatigavelmente o nome de Deus, alguma coisa nos acontece. Até na Índia acontece. Na Índia, eles aconselham que meditemos sobre o “Om”, que quer dizer a mesma coisa, realmente; e exatamente o mesmo resultado tem de acontecer. Por isso é que eu digo que não pode racionalizar a coisa e passar adiante…
Lane: - Afinal de contas, qual é o resultado?
Franny: - O que?
Lane: - Estou perguntando qual é o resultado que deve supostamente seguir-se. Todo esse negócio de sincronização e de superstição sem pé nem cabeça. Estou vendo que isso não te faz bem ao coração. Não sei se você sabe disso, mas qualquer pessoa pode fazer a si própria uma…
Franny: - Você consegue ver Deus!, cortou Franny. Alguma coisa acontece na parte absolutamente não-física do coração, onde os hindus afirmam que o Atma reside, se é que você entende alguma coisa de religião. E então vemos Deus. É só isso.
(...)
O impacto do clássico russo na mente de Salinger se deu após o próprio autor começar a praticar sadhanas e entender o poder da repetição de mantras, além de se tornar um assíduo nas aulas e retiros da Vedanta Society. Tendo recebido iniciação de Swami Nikhilananda, Salinger manteve relações muito próximas com as atividades do ashrama nova-iorquino e os ensinamentos que recebeu mudaram sua concepção de mundo.
Por ser um mestre-nato da literatura juvenil, Salinger levou para seus escritos inúmeros insights vedantistas e orientais vividos por jovens personagens complicados, incompreendidos e dotados de certa “loucura divina”, ou, um grande anseio por descobrir o sentido da existência e por compreender o Sagrado.
A questão do Sagrado sustenta todas as obras de Salinger que já foram publicadas e está presente em maior ou menor grau em todas as suas narrativas, dando ao público uma literatura com muitos significados e joias espirituais deixadas subliminarmente nas linhas que compõem suas diversas estórias.
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